O jurista Ives Gandra Martins fez uma impactante série de perguntas, nas quais expôs, em detalhe, como já não é mais possível aplicar o conceito de democracia no Brasil. O jurista, pelas redes sociais, propôs dez perguntas aos seus seguidores, apontando: “Perguntas que, como um velho professor, eu confesso que não sei responder”.
Na primeira pergunta, o jurista questionou como é possível interpretar o termo “guardião da Constituição”, que a Constituição Federal atribui ao STF, nas circunstâncias atuais, em que o Supremo se substitui ao Congresso Nacional e legisla em seu lugar.
Na segunda pergunta, Ives Gandra Martins questionou qual seria a interpretação correta do artigo da Constituição que define as competências do Congresso Nacional e que aponta, expressamente, que é competência exclusiva do Legislativo “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes”, quando o que se vê é que o Executivo fica insatisfeito, recorre ao Judiciário, e o Judiciário legisla sem qualquer demonstração de que o Legislativo pretenda preservar sua competência.
Na terceira pergunta, o advogado questionou as razões para que o Supremo Tribunal Federal legisle, quando não há qualquer previsão legal para isso.
Na quarta pergunta, Ives Gandra Martins lembrou que a Constituição brasileira prevê o “amplo direito de defesa”, e questionou se isso foi modificado. Ele apontou que a ampla defesa prevista na Constituição vale para todos os processos, mas o que se vê nos inquéritos políticos conduzidos em cortes superiores é muito diferente. Gandra disse: “Nós estamos vendo nesse inquérito de fake news, muitas vezes a pessoa presa e o advogado não tem acesso, tem dificuldade em poder saber a acusação feita - isso está sendo tratado até no Congresso Americano. Como interpretar essa “ampla defesa” que está na Constituição?”. O advogado comparou: “antigamente, havia sustentações orais perante o Tribunal; hoje, sessões virtuais, manda-se e não se tem certeza se os ministros vão ouvir”. Ives Gandra Martins perguntou: ““ampla” foi diminuída, ou é impressão minha? Como interpretar o art. 5º inciso LV? O “ampla” continua o mesmo?”
Na quinta pergunta, o jurista lembrou que, em dois artigos, a Constituição garante a ampla liberdade de expressão, e apontou que temos visto prisões por manifestações. Ele perguntou: “Como fazer com que prevaleça uma interpretação de que ela é relativa e depende daquele conceito - discurso de ódio, democracia - dado, não pelo Congresso Nacional, mas pelos ministros do Supremo?”. O jurista lembrou: “o direito de expressão é a maior demonstração da existência de uma democracia”.
Na sexta pergunta, Ives Gandra Martins questionou a absurda narrativa de “tentativa de golpe de estado” no dia 8 de janeiro. Ele lembrou que, em livro, fez um histórico das guerras em todo o mundo, e disse: “nunca vi, na história do mundo, um golpe de estado em que um governo foi derrubado sem armas. Para mim, o que houve no dia 8 de janeiro foi uma baderna, em que não houve um único tiro”. O jurista afirmou: “Em Brasília, retiraram grande parte da segurança e desapareceram os vídeos daqueles que depredaram, até hoje eles não apareceram”. Ives Gandra Martins afirmou que o que houve em 8 de janeiro foi uma baderna, apontando a semelhança com a baderna feita pelo PT quando Michel Temer era presidente, e que não teve qualquer consequência. O jurista disse: “não consigo entender como um grupo desarmado, sem um tiro, possa ter querido dar um golpe de estado”.
Na sétima pergunta, o jurista apontou que a Constituição determina que os parlamentares são invioláveis por QUAISQUER palavras, e que a prisão de um deputado só pode ocorrer em flagrante. Ele disse: “Temos deputados presos por manifestações. Aquele artigo de “quaisquer palavras”, então, é “quaisquer palavras menos aquelas que a Corte decidiu que não podem ser ditas””. O jurista lembrou o caso do deputado Daniel Silveira, apontando: “disse uma besteira, uma bobagem, MAS…, pela Constituição, era inviolável, enquanto parlamentar”. Ives Gandra questionou: “não houve flagrante; foi preso baseado em vídeo. Tenho dificuldade em interpretar [esse] Direito”.
Na oitava pergunta, Ives Gandra Martins questionou a recente decisão de estender o foro privilegiado, mostrando que o Supremo Tribunal Federal mudou seu entendimento, afastando-se do texto constitucional. Ele disse: “Agora, estende o foro privilegiado mesmo para aqueles que estão fora do mandato… Não é isso que está na Constituição. Por mais que possam ser condenados, e deveriam ser, deveriam ser processados desde a primeira instância. Também tenho dificuldades de compreender e trago isso para todos”.
Na nona pergunta, o jurista questionou como se deve interpretar o papel do Ministério Público, se a Constituição diz uma coisa mas o Supremo entende outra. Ele afirmou: “o Ministério Público é o único titular da ação penal. Art. 129 - competência privativa. Se o Ministério Público não começar a ação penal, não pode haver ação penal”. Ele contrastou com o inquérito das fake news, que não apenas foi iniciado sem iniciativa do Ministério Público, mas prossegue apesar de ter sido arquivado. Ele lembrou que o inquérito foi batizado de “inquérito do fim do mundo” pelo então ministro Marco Aurélio Mello, apontando: “o ministro Marco Aurélio tem dito aquilo que nós, os velhos juristas, aqueles antigos ministros, dizemos…”. Ele acrescentou: “de rigor, no momento em que se mantém um inquérito que vai se alargando, vai crescendo, ninguém sabe como ocorre, como a coisa foi colocada em sigilo, e o Ministério Público pede o arquivamento e não é arquivado… COMO INTERPRETAR?”
Na décima e última pergunta, o jurista questionou o que ocorreu com o direito de defesa no Brasil. Ele apontou: “numa democracia, a advocacia é a instituição talvez mais importante, porque na democracia existe direito de defesa. O direito de defesa não existe nas ditaduras, as ditaduras impedem o direito de defesa. É um direito que foi consagrado na Constituição, por isso é que se fala em AMPLA defesa. E o que temos visto é que nós, advogados, não estamos tendo o tratamento adequado por parte da Suprema Corte, proibindo sustentações orais, regimento interno prevalecendo sobre o Estatuto da Ordem… É isto que representa, realmente, a democracia?”.
Após expor as suas perguntas, o jurista disse: “São dez perguntas que eu trago aos amigos para responder. Como perceberam, não consegui. Sou um velho de 89 anos, ainda prisioneiro dos conceitos clássicos de democracia, e que, enfim, tenho dificuldades seríssimas de compreender a democracia hoje colocada pelo Supremo Tribunal Federal como intérprete máximo da democracia. E, principalmente porque, os admirando e conhecendo o valor de cada um deles, realmente fica muito difícil para este velho advogado contestá-los. Por isso, deixo aos meus amigos minhas dúvidas, minhas perguntas e minha incapacidade de responder, porque o meu conceito de democracia, evidentemente, não bate com aquele dos eminentes ministros”.
As prisões políticas após o dia 8 de janeiro são alguns dos mais recentes sinais de que, no Brasil, os cidadãos não vivem em uma democracia. Para um grupo de pessoas e empresas, a tirania ganha contornos de implacável perseguição política e ideológica, e esse grupo “marcado” vem sendo perseguido, há muito tempo, com medidas arbitrárias, como prisões políticas, buscas e apreensões, censura, bloqueio de redes sociais e confiscos.
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